«Sendo assim - disse o gato - , quero prestar-te o serviço; mas não sei por que digo «sendo assim», uma vez que não compreendo nada.
-És formidável - disse o rato.
-Mete a cabeça na minha boca e espera - disse o gato.
-Vai demorar muito tempo? - perguntou o rato.
-O tempo de alguém me pisar o rabo - disse o gato. - Tenho de ter reflexos rápidos. Mas vou deixá-lo bem estendido, não tenhas medo.
O rato afastou as mandíbulas do gato e meteu a cabeça entre os dentes afiados. Logo a seguir retirou-a.
-Diz-me cá - perguntou - , hoje de manhã comeste tubarão?
-Ouve - disse o gato- , se não te agrada podes pôr-te a mexer. Esses truques não me impressionam. Desenrasca-te sozinho.
Parecia aborrecido.
-Não te zangues - disse o rato.
Fechou os pequenos olhos pretos e pôs a cabeça em posição. Cauteloso, o gato encostou os caninos acerados ao pescoço cinzento e delicado. Os bigodes pretos do rato misturaram-se com os seus. Desenrolou a cauda felpuda e deixou-a estender-se no passeio.
Aproximavam-se, a cantar, onze rapariguinhas cegas do Orfanato Júlio o Apostólico.»
Boris Vian, A Espuma dos Dias, Relógio d'Água, página 207
2 comentários:
Uma das minhas passagens preferidas, num dos meus livros preferidos. Aconselho-te, caso estejas interessada, A Erva Vermelha: até agora, é o melhor livro de Vian que já li (e tenho os romances todos, mais As Formigas, uma colecção de onze contos).
Um Abraço assim enorme, de saudades e outras coisas assim muito semelhantes.
Provavelmente não te lembras mas li-o porque mo aconselhaste :-)Também já ouvi falar n' As Formigas: fica para um futuro próximo. Ando um bocado desaparecida, eu sei... A ver se em breve te dou um abraço pessoalmente!
bjs**
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