quarta-feira, junho 24, 2009

«Às árvores, para dar flor há-de-lhes doer»

«De súbito, ficou imóvel de espanto. aquecida com o amor de dois mendigos, tinha o galho em que pendiam enforcados cheinho de flor. Dura e má como as pragas juntara no ramo que os cobria toda a flor que a terra assolada não pudera produzir. Era nada, quase nada, algumas flores miudinhas prestes a sumirem-se ao primeiro sopro - era dor estreme e sonho estreme. Nos seus braços haviam sido enforcados muitos desgraçados e as suas raízes mortas pelas lágrimas de aflição. Tolhida com os gritos, não bebia água nem sugava húmus. Vira passar homens, primaveras e reinados, sem se comover, mão arrepelada a amaldiçoar a terra e o castelo. Assistira a transformações de solo, a tempestades, a cataclismos e a guerras, sempre petrificada como a morte - e naquela noite, trespassada pelo amor dos dois mendigos, desentranhara-se em ternura, como se nela se concentrasse toda a paixão, a primavera e o noivado da terra - a árvore maldita que desde séculos servia de forca.»

Raul Brandão, A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore, página 116

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