segunda-feira, junho 15, 2009

«Guida tinha o gosto de se ouvir a sós. No banho ficava tempos e tempos a recitar palavras à toa e em todas descobria um significado especial, relacionado com coisas que só ela sabia. Um sentido oculto, como sucede com os surrealistas nas suas escrituras de ocasião.
(Não nos espantemos, de resto. Que isto se desse com Guida, não tinha nada de especial. Especial, porquê? O falar alto, só para si, é um excitante intelectual, um devaneio dos solitários, sonho ou vingança. Tece, diálogos ao espelho as burgesinhas das vilas, fala o cego para o surdo sobre o mundo que os rodeia. Canta o galo capado, poucos o entendem. E poetas há, por essas secretarias e repartições, que vagueiam alta noite nas ruas da Baixa a esmiuçarem conversas de sua imaginação.
É natural. Vivemos numa época em que cada qual fala para si mesmo na companhia de muitos outros.)»

José Cardoso Pires, O Anjo Ancorado, Leya, pág. 28

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